Há dias, estava no parque de estacionamento de um dos nossos hipermercados, no grande Porto. Preparava a porta da mala do carro para lhe inserir produtos, quando passa no corredor entre os dois blocos de carros estacionados, uma carrinha Renault Megane, que trava de chofre, sete ou oito metros após passar por mim. O condutor, braço e cabeça fora da janela, saúda-me com grande efusividade e estridência, e até, com uma suposta intimidade, que me surpreendeu.
- Olá, como estás, meu velho? Ena pá, há quanto tempo, que saudades!...
À cautela, pois não reconheci nenhum dos traços fisionómicos do cavalheiro, ripostei, devolvendo o tutear, na ânsia de, com a conversa, ter um lampejo e reconhecer, eu sei lá, um qualquer amigo que ficou no tempo, meio perdido lá para atrás...
- Então, como vais? É como dizes, há quanto tempo!...
Tenho que o admitir! Eu continuava sem saber donde conhecia o raio do homem. Entretanto, ele havia engrenado a marcha-atrás e estava, ali mesmo, janela aberta, braço de fora a tocar-me, e um sorriso estampado no rosto de orelha a orelha.
- Eh pá, há quanto tempo te não via. Olha, ainda ontem estive com o Teixeira, com o Mário e mais uma data deles. Ena pá, foi em grande! Sabes, eu deixei a empresa para a qual trabalhava e agora estou lançado no transporte internacional. Sabes como é! Muito cansativo, fora de casa, às vezes 2-3 semanas, mas, ouve lá, sacam-se outras regalias. Levo umas coisas, trago outras, sabes como é!...
- Sim senhor, grande vida a tua pá. Olha, sê muito feliz!
- Eh pá, estou tão feliz, que olha, toma lá: ofereço-te este perfume, que saquei numa das minhas últimas viagens...
- Por amor de Deus, não posso aceitar. Então apareces de súbito, queres-me prendar com um perfume e eu não tenho nada de especial para te retribuir... Agradeço, mas não tem jeito algum!
- Faço questão! O perfume é teu!
O homem continuava a espalhar o seu charme, sorrindo abertamente e falando sem cessar:
- Olha, ainda ontem estive numa jantarada com o Teixeira, o Mário, o meu cunhado e uns tantos outros, de quem já te falei, e topa, tinha comigo um produto de grande categoria: relógios que trouxe da Suíça, dois modelos, um sport e outro clássico. Ó amigo, produto de grande categoria, a valerem no mercado 1.100 euros cada. Ouve lá, os gajos ficaram com eles todos! Mais tarde, o Teixeira deu-me 500 euros, o meu cunhado 460, sabes como é, fazem-se uns trocos!
- Sim senhor, que bom para ti!... - que mais tinha eu para lhe dizer?
- Espera, espera, deixa ver se ainda me sobrou algum?... - diz-me ele.
Por esta altura, comecei a ver mais fundo e a pressentir que estava diante de um miserável e reles burlão, capaz de encenar um pseudo relacionamento que jamais havíamos tido. Não conhecia o tipo de lado algum, nada na minha memória me levava até àquele ser grotesco e bizarro De seguida, abre o porta luvas e retira dois pequenos estojos de aspecto luxuoso. Mostra-me dois relógios, aponta para a origem dos mesmos e questiona-me:
- Com qual deles ficas? Vá lá, decide-te!... Estou certo que perante peças como estas, desta categoria, tu és capaz de me arranjar uns trocos...
- Meu caro, nem penses! Não preciso de relógio, não me faz falta e quanto aos trocos, esquece! Não tenho a mais pequena chance...
Ó pá, vá lá, dá-me uma mão! Mais logo à noite, quero levar a mulher a comer uma mariscada e, dava-me muito jeito, ter uns cobres a mais no bolso.
- Esquece!, todo o meu dinheiro é este - e rapo do bolso traseiro das calças, da única nota de 5 euros que eu sabia trazer comigo.
- Não me digas, tu não me digas, que não eras capaz de ir ali à máquina do multibanco, dentro do hiper e levantar algum, só mesmo para me desenrascar. Eh pá, vá lá. Diz-me, olhando para estas preciosidades, quanto é que poderias arranjar-me? Eu não quero que me pagues nada, só pretendo a tua ajuda para sair mais logo com a mulher. Pronto, vou facilitar-te a vida: atira um número, qualquer que seja aquilo que possas, atira um número!...
- Ó pá, vai à tua vida! O meu orçamento doméstico já não tem mais nada para esticar. Olha, em boa verdade, se é que alguma vez os trilhos da vida fizeram com que as nossas vidas se tenham cruzado, de que me não recordo em absoluto, olha, adeus para ti!...
O manata esboçou um sorriso forçado, meteu primeira e arrancou dali para fora. Fiquei, após o arranque da carrinha, meio atordoado a tentar perceber o "todo" do que se tinha passado naqueles minutos breves, sete ou oito, em que esgrimi argumentos com tamanho embusteiro. O diálogo que aqui tentei reproduzir com o máximo de fidedignidade, é a verdade dos nossos dias, é a burla que pode atingir-nos das mais diversas formas, quer seja pela via electrónica, quer seja no porta à porta. Quanto a este tipo de abordagens, num qualquer parque de estacionamento de uma grande superfície, confesso que ainda me não tinha ocorrido que pudesse acontecer... Aqui fica o meu testemunho. Para que conste e possa servir de exemplo de mais um dos esquemas, em que os burlões se especializaram nos últimos tempos. Sejamos pois, prudentes!